
Copenhague — InkDesign News — Uma equipe internacional de pesquisadores recriou a receita de um iogurte tradicional, quase esquecida, que era comum nos Bálcãs e na Turquia – utilizando formigas. Publicado em 3 de outubro na revista iScience pela Cell Press, o estudo mostra que bactérias, ácidos e enzimas presentes nas formigas podem iniciar a fermentação que transforma o leite em iogurte, resgatando práticas ancestrais como fonte de inspiração para a ciência e gastronomia contemporânea.
O Contexto da Pesquisa
O estudo parte do interesse pelas múltiplas formas de produção de iogurte, que diferem significativamente das técnicas amplamente padronizadas atuais, geralmente restritas a duas cepas bacterianas. A biodiversidade microbiana dos métodos tradicionais, associada à cultura local, sempre trouxe diversidade de sabores, texturas e características sensoriais únicas a cada lar ou comunidade dos Bálcãs e da Turquia.
Segundo Leonie Jahn, pesquisadora da Universidade Técnica da Dinamarca, a diferença entre o iogurte moderno e o tradicional reside na riqueza microbiana:
“Today’s yogurts are typically made with just two bacterial strains. If you look at traditional yogurt, you have much bigger biodiversity, varying based on location, households, and season. That brings more flavors, textures, and personality.”
(“Os iogurtes atuais são, geralmente, elaborados com apenas duas linhagens bacterianas. No tradicional, há muito mais biodiversidade, variando conforme o local, a família e a estação do ano. Isso traz mais sabores, texturas e personalidade.”)— Leonie Jahn, Universidade Técnica da Dinamarca
Resultados e Metodologia
A equipe visitou uma vila búlgara, berço familiar da co-autora e antropóloga Sevgi Mutlu Sirakova, onde moradores mantinham viva a lembrança da prática. Observando orientações da comunidade, os cientistas depositaram quatro formigas inteiras (espécies do gênero Formica) em um recipiente de leite morno, reservando-o dentro de um formigueiro para fermentar durante a noite. Na manhã seguinte, o leite apresentava-se espesso e levemente ácido — evidenciando o início do processo de iogurtização. O sabor, descrito como levemente picante e herbáceo, remetia a um “gosto de gordura de pasto”.
Em laboratório, foi constatado que as formigas transportam bactérias produtoras de ácido lático e acético, essenciais para coagular o leite. Entre os microrganismos, identificou-se inclusive uma linhagem similar às usadas em fermentação de sourdough. Além disso, o ácido fórmico, parte do mecanismo de defesa das formigas, acidifica o leite e molda sua textura, criando ambiente favorável à proliferação de microrganismos adaptados à acidez. Enzimas presentes tanto nos insetos como nas bactérias atuam na quebra das proteínas do leite, completando o processo.
Comparou-se a eficácia de formigas vivas, congeladas e desidratadas. Apenas os insetos vivos estabeleceram corretamente a comunidade microbiana ideal para o iogurte, embora, segundo os pesquisadores, cuidados sejam indispensáveis para garantir a segurança alimentar:
“live ants can harbor parasites, and freezing or dehydrating ants can sometimes allow harmful bacteria to flourish.”
(“formigas vivas podem abrigar parasitas, e congelar ou desidratar os insetos pode, em alguns casos, favorecer a proliferação de bactérias nocivas.”)— Equipe de Pesquisa
Para testar aplicações contemporâneas, chefs do restaurante Alchemist, de Copenhague (duas estrelas Michelin), criaram pratos inovadores, como sorvetes de iogurte em formato de formiga, queijos tipo mascarpone com sabor pungente e drinques clarificados com leite, todos inspirados pelo iogurte de formiga.
Implicações e Próximos Passos
Esta redescoberta sugere que tradições aparentemente exóticas podem fundamentar avanços científicos relevantes para a alimentação e o resgate do patrimônio biocultural. O estudo reforça que práticas ancestrais, ao serem devidamente estudadas, podem informar novas técnicas alimentares e ampliar repertórios no campo da fermentação. Veronica Sinotte, autora principal, aponta a importância de preservar a memória culinária comunitária:
“I hope people recognize the importance of community and maybe listen a little closer when their grandmother shares a recipe or memory that seems unusual. Learning from these practices and creating space for biocultural heritage in our foodways is important.”
(“Espero que as pessoas reconheçam a importância da comunidade e que ouçam com atenção quando suas avós compartilham receitas ou memórias aparentemente estranhas. Aprender com essas práticas e abrir espaço para a herança biocultural em nossos hábitos alimentares é fundamental.”)— Veronica Sinotte, Universidade de Copenhague
A equipe propõe investigações futuras para garantir segurança alimentar e entender como a diversidade microbiana de métodos tradicionais pode enriquecer processos industriais. O resgate de práticas regionais pode se converter em fonte de inovação e sustentabilidade para a ciência dos alimentos.
Fonte: (ScienceDaily – Ciência)